quarta-feira, 27 de agosto de 2008

A conversa e a coisa

Dois amigos que não se viam há muito tempo se encontraram numa das esquinas daquela movimentada cidadezinha. Apaga! Parece início de algum e-mail-corrente com mais uma piadinha sem graça. Mas o fato é que se encontraram. E pasmem, eles não tinham sexo. Pelo menos não contarei a você. ‘Que atrevimento’, você aí do outro lado pode pensar. No entanto, declaro: ‘Muitas coisas não precisam ser ditas’. Reitero com displicência: se encontraram, um ao outro. Uma à outra.

A vida nos leva para tortuosidades e até monstruosidades! – exclamou um deles ou delas.

– Deixe de sensualidades, quem te leva é você próprio. Não coloque a culpa na vida – respondeu o outro.

– Ora, mas se é em torno da vida que tudo gira e revira? Você, como eu e todo o resto dos pobres mortais respiram o ar malévolo que paira sobre nossas vidas.

– Porém se engana ao afirmar tão categoricamente idéias tão absurdas do ponto de vista pragmático, filosófico, cultural, sociopolítico e da globalização...

– Pare! Mas para quê usar termos pedantes para coisas tão simples e desconjuntadas, por isso mesmo? As idéias são minhas e o absurdo é nosso.

– Oh, mas caro [ou cara], e a vergonha estampada nos rostos que passam diariamente por esquinas congestionadas de aflições como esta aqui?

– Olha só, mas o que o tempo fez com você? A felicidade é um conceito inventado, não-vergonhoso e procurado sem rédeas ou cabrestos.

– Mas e a vida que você disse que gira e gira? É a vida, que você insiste em culpá-la. Pobrezinha!

– É verdade, pobrezinhas pombinhas pesadas de câncer desanuviadas de seus céus!

– Não, as aves são sorrateiras e belas e confusas ao mesmo tempo. Sabe que vi outro dia uma pomba cagar na cabeça de uma mulher, numa praça não tão distante daqui, onde o coreto está infestado de pulgas, carrapatos, aranhas, morcegos, baratas infames, até cobra. Ah, e dizem que tem gente também. Mas é uma balbúrdia tão grande, que nem consigo mais distinguir quem é quem por lá.

– E a moça se juntou a eles?

– Que moça?

– A moça da cabeça imunda. Quer dizer, suja do cocô da pomba.

– Ah, a moça. Não era tão moça não. Depois de esbravejar aos quatro ventos, deu meia volta e foi em busca da felicidade, achando que na próxima esquina a encontraria, mesmo com a cabeça empesteada. Que solidão.

– Solicitude de quem observa atentamente as armadilhas nauseabundas...

– Bundas... perdão – disse o outro como se acordasse de um sonho – Não baixemos o nível!

De repente acordam e percebem que aquilo não era real. Não havia pombas cagando em ninguém, nem praça, nem coreto, nem esquinas, nem nada. Era tudo ermo e silencioso. Uma lua brilhava intensamente nos céus de um tempo que se perdeu nos obstáculos que não foram transpostos, traduzidos em solução. Neste momento, até a pomba pôde exclamar...

Um comentário:

Anônimo disse...

Oba! Novinho em folha... ou melhor em tela. Saboreei os textos e até lambi os dedos no final (que audácia vergonhosa! ui, adoro). Espero ansiosa por mais, muito mais. Já que você mencionou Clarice no comentário que fez em meu blog permita-me escrever aqui que você é o meu Caio Fernando de Abreu =)Olha a pamonha fresquinha! Olha o curau! Vai pamonha? Vai curau? Muitos beijos de puro milho verde