terça-feira, 30 de setembro de 2008

Impetuoso

Nomes são chamados e as pessoas se apresentam uma a uma em frente à velha prisão na parte baixa da cidade habitada por zumbis. O cenário é desolador: o sol não aparece há dias, o poder é disputado pelas mais vis criaturas e a comida é racionada. O mundo acabou e eles não se deram conta.

O ímpeto impune continuou a fazer parte de sua constituição física e psicológica. Andava pelas ruas com uma segurança que era só dele, de um jeito todo particular e destemido. Toda essa confiança só foi conseguida depois de muito relutar diante de seus próprios medos e angústias. A aflição era tão grande que quase o levou pelos ares no dia do nascimento daquela nova arma à prova de vidas.

Querem interferir nas minhas lindas palavras, na minha forma de usá-las, de articular uma com a outra ou de não articular nada. Um A pode não ser mais um A e um É de repente pode se transformar num solitário E, despossuído de seu intenso acento que lhe dava força e legitimidade. Mas não liga não, eles não passam de uns ignorantes. Força!

De toda forma, a incidência do sol em sua pele continuou a alimentá-lo por dias a fio, incansável. Era sobre-humano. No entanto, sabia muito bem que continuava a ser tão homem quanto o desafeto sentido no momento de uma desilusão amorosa.

É fogo não perceber que a água pode cobrir e purificar até as coisas que já estão puras. Mesmo que elas sejam pura imundície, no íntimo são compostas pela limpeza e inocência características de um ser ambulante-contraditório-mutante-humano.

segunda-feira, 29 de setembro de 2008

Em outra galáxia

Pareço com uma parede branca e intocada à espera da pintura e de todas as figuras que serão desenhadas e imaginadas. As crianças ainda não chegaram com toda a sua peraltice sujando e brincando com os desenhos de suas mãos. Mas elas foram encomendadas, sinto isso. Um dia, elas ainda vão entrar por aquela porta ali, correndo e sorrindo de felicidade.

Hoje – voltando ao hoje – não estou em nenhum lugar, nem em mim mesmo. A sensação é de que acordei em outra galáxia recheada de promessas para o presente sem nostalgia do passado. Este novo mundo é tão quente e aconchegante que o sonho parece querer durar só mais um pouquinho, sem tempo nem obrigações urgentes.

De qualquer forma, o caminhar demonstrava que não havia direção certa, que o certo e o errado é uma construção temporal e autoritária, que nem percebemos conscientemente o que nos leva a realizar algumas ações ou deixar de fazer aquilo que sentimos vontade. Pois eu quero todas as vontades e desejos e que a bomba atômica seja jogada no monte de pecados inventados e levados a sério por meio de doutrinas vãs.

É fato que o fato foi expulso de forma agressiva e feroz e jogado a quilômetros de distância dos velhos valores que valeram por vários séculos saciados pelo preço da vingança levada à forra com vigor e maestria de um varão perpetuado por suas características caricatas e disponíveis de forma fatal nos olhos lançados e esperneados entre pés prostrados por terra terrificada por titubeantes tremores.

domingo, 28 de setembro de 2008

Cabeça pesada

Os discursos são falácias e blá-blá-blás que não são digeridos, ficam lá e são usados para enganar os próprios oradores, pobres criaturas doentes e dementes. A cabeça já não processa aqueles dizeres empolados e mentirosos. Mentirosos!

Mas as festividades com pão e circo continuam firmes e fortes. A novela sagrada de todos os dias ameniza a dor de viver num país sem eira nem beira, mas com muitos fundos falsos cheios do rico dinheiro roubado descaradamente. Cruel. Abominável.

Mudando de assunto.

Sentir felicidade é como estar flutuando em pensamentos encorajados pela brisa da tarde despreocupada, cujo pano de fundo é o estonteante pôr-do-sol.

Como saber que a fragrância pertence à alma escolhida para ser cultivada por todo o caminho torto que é a vida?

Sabendo. Existem coisas inexplicáveis que nem a própria coisa consegue desenhar no quadro negro e deixar claro aquilo que antes era inebriado de trevas.

sábado, 27 de setembro de 2008

Êxtase

A malemolência faz com que o corpo não pare e se agite cada vez mais, sambando e quebrando ao ritmo do som que exercita os músculos, a pele e, principalmente, a mente. Um estado de êxtase tão grande que faz com que os suspiros sejam ouvidos por qualquer um e por todos.

Inquieto e feliz. É preciso aproveitar e sugar o momento até a última inspiração, pois não sei em qual momento estarei endiabrado novamente, fora de mim e de carne-e-osso em tudo. A energia é sentida até no vai-e-vem do balanço da praça, do sorriso de uma criança, do farfalhar de árvores magnifícas.

Olha a natureza de novo aí minha gente. Ela está em mim e eu estou nela. Acho que já falei isso antes, mas é que isto é muito enraizado em mim. Poderia passar horas admirando aquele arbusto ali, tá vendo?, e não me cansaria. Seria um misto de meditação e agradecimento por poder olhá-lo, senti-lo, entornar tudo aquilo como se fosse um saboroso copo de cerveja em dias quentes.

O canário cantou ao longe. Mas estava tão perto que nem percebi a distância. Mas a distância, muitas vezes, é inventada sabia? Sim, sim. Uma dia inventei que estava distante e me fechei em mim mesmo. Foi um fechamento gostoso, mas com toda essa intensidade que me devora é impossível não dar meia-volta e correr de braços abertos para a multidão de sorrisos.

Bom, mas deixa eu ir, porque a vida lá fora me aguarda ansiosamente. O coração palpita de felicidade. O dia está lindo. E ele é todo meu.

sexta-feira, 26 de setembro de 2008

Solidão

Por que só aquilo que a gente não possui faz tanta falta e traz tanta solidão? A complexidade latente e intimamente ligada a mim é boa ou ruim? Olhar para dentro, para toda esta complicação interna de emoções é prejudicial ou me faz crescer? Mas crescer para onde? Para quê? É possível controlar a raiva e o amor presentes lado a lado nesse amontoado de indecisões?

A caneta falha. Não há mais tinta. Foi o fim. Morreu.

A batida de uma música me faz viajar pelo mundo que me invade substancialmente e sem pedir licença. Vai empurrando tudo e gritando palavras desencontradas e cheias de beleza sonora. Deitado na cama, ele fica ali, ora ao lado, ora possuindo o corpo jovem e cansado depois de dias ininterruptos. Dias mesmo, pois não houve noite. O brilho solar não descansou por sete dias, incansável e vigoroso.

O enxame de idéias foi sacudido e o autor foi advertido de que elas eram muito perigosas e deveriam ficar dormindo por muito tempo, ou para sempre. Mas ele não se contentou e continuou a cutucar com vara curta todo aquele objeto cheio de imaginações. Não se arrependeu: era fascinante vê-las se formando, desde o princípio até o final. Todo o processo foi registrado pelo outro enxame que havia nele.

Pegou o telefone e saiu a contar para os amigos mais próximos a sua grande descoberta.

“Posso mudar o mundo com apenas um abrir e fechar de olhos. O poder da minha mente vai me transformar e levar aos recantos mais esquecidos das vilas tudo quanto há de belo, necessário e eterno”.

quinta-feira, 25 de setembro de 2008

Modelos de camisa

Uma camisa com estampa de oncinha perambulava por aquele vale repleto de diferenças e desigualdades. Achei engraçado, porque era diferente. Ou achei diferente porque era engraçado? É preciso muita coragem para não se importar com a opinião alheia, mas mesmo aqueles que só vivem de acordo com o que pensa sofre influências externas das forças sociais e culturais.

O encontro inesperado ocorre bem no momento em que o céu parece habitar os pensamentos e o sol estala nos galhos das árvores lá fora. A corrida de corpos continua ininterrupta lá embaixo. Aqui, o ambiente esfria e é possível ouvir seu coração gelado batendo calmamente, sem emoção, sem vida.

O assobio precisa ser praticado todos os dias. Acredite! Se você não o fizer esquecerá rapidamente como se produz um som tão bonito soprando por entre os lábios. Me surpreendi outro dia quando o som produzido não era tão claro como na época de criança. Será o envelhecimento chegando ou se trata apenas do endurecimento das existências encampadas pelo vulcão de afazeres diários?

O verde afugenta o vermelho e promete consolo ao amarelo, que se camuflou no marrom desbotado da bota de astronauta que caminhava pela rua. O preto ainda se mantinha na pose de rei e senhor de tudo o que havia e era.

O verde come o vermelho e o vermelho se agiganta nos olhos cansados e baqueados pela poeira poluente e doente da grande cidade.

quarta-feira, 24 de setembro de 2008

Escrever nas flores

O canteirinho estava repleto de pequenas flores – aquelas chamadas de boa-noite, ou bom dia! – vermelhas, laranjas, lilases e rosas. Quase ninguém as olhava, mas elas estavam ali exalando a beleza sem pedir nada em troca. Elas apenas existiam por elas mesmas, sem se preocupar com a próxima estação ou vidas futuras.

No entanto, é engraçado como se assanham quando o vento bate nelas. É como se o macho cortejasse a fêmea sedenta de amor, carinho e atenção. É uma troca tão singular que chega a emocionar quem dispõe de sensibilidade suficiente para expandir os horizontes, para ser o próprio horizonte que se estende pelos passos irregulares do dia-a-dia.

Ao chegar ao trecho do túnel lá depois do monumento que tomava quase todo o espaço dos olhares, parou e percebeu como o sol pode ser distraído e despreocupado. Palavras se remexiam e gritavam interiormente, pois era preciso expressar, falar, berrar, se mostrar. Comunicar. Necessidade básica e primordial na vida de qualquer mortal. Elas, as lindas palavras – mesmo as mais feias e impraticáveis – explodiram uma a uma a toda a velocidade.

De certa forma, não era possível avançar para mais adiante daquele semáforo. As pernas já não obedeciam às ordens cerebrais desconexas. Elas foram parar na ponte onde não havia nada do outro lado.

Era vazio e puro.

O começo de tudo.

terça-feira, 23 de setembro de 2008

Paisagens

O pano se estendeu por toda a sua face e cobriu, como se fosse um manto, todas as suas feições e expressões desvairadas e loucamente cultivadas durante décadas. O espelho fazia a paisagem parecer muito comum, já visitada e apreciada muito antes disso tudo aqui ser habitado por pessoas e bichos.

Divagando pelas ruas, ele estava neste estado: sem saber aonde chegar, o que fazer, o que pensar, como agir. Parecia não pertencer a nada nem ninguém, era tudo muito estranho e frenético, porque as pessoas passavam e ele não conseguia distinguir rostos conhecidos. Era tudo muito de outro mundo, de outros espaços nunca presenteados.

A música tocava em becos invisíveis pelo entardecer que tomava todas as ruas daquela vila cheia de alegria e vida. As sombras tomavam conta e o trem passava ali dentro em algum lugar. Só era possível ouvir o barulho se distanciando cada vez mais. Será que estava cheio? A lua estava.

O requebrar e o molejo iam tomando conta da energia do lugar. Lembrava algum baile latino e com muita quentura e tempero ardente. Todos estavam muito animados e eletricamente acordados e desfilavam por todo canto, curtindo momentos que logo mais fariam parte de boas memórias.

Boas recordações. Bons ditados. Boas cirandas. Brincadeiras divertidas.

Felicidade desregulada e desbaratinada.

segunda-feira, 22 de setembro de 2008

Unhas e dentes

Não quero saber. Não há argumentos nem falácias que me fazem voltar atrás quando meus queridos entes estão ameaçados, quando alguém ousa interferir de forma inescrupulosa na harmonia do lar onde me sinto confortado, onde sinto o poder das ligações e das relações humanas e fraternas. Mantenha-se à distância, pois a fera está à solta pronta para atacar os insistentes boçais sem dignidade alguma.

Como é possível olhá-lo e não perceber a máscara que o cobre da cabeça aos pés? É muito descaramento. Mas não vou perder mais meu tempo com essa reles criatura não, não merece. O que é dele está guardado no mais íntimo de sua imbecilidade e hipocrisia.

Apesar de tudo, um dia feliz se anunciou com os raios potentes do sol da inauguração da incandescente primavera. Se estiver frio, o coração esquenta qualquer possibilidade de resfriamento dos relacionamentos fincados no mar de esperança e embriaguez.

O caso tornou-se tão importante que a Lua foi dar uma espiadinha com todo o seu brilho descomunal. Com sua beleza incomparável e inesgotável, soltou o veredito:

“Eu vos declaro felizes por agora, por hoje. É tudo o que posso fazer no momento, pois os problemas são essenciais para uma vida digna da ausência de sentido e com infinitas escolhas.”

domingo, 21 de setembro de 2008

Três coisas

Por demais cansado para discorrer sobre muitos assuntos, muitas loucuras...

Dessa forma, aí vão apenas três fatos marcantes que voaram por minha mente hoje:

Um churrasco e um pequenique na laje, enquanto o sol despontava no horizonte gelado. Me deu vontade de estar lá, de pular, de quebrar as grades e correr para o frescor da tarde domingueira.

Os cheiros me trazem recordações. Boas e ruins, mas elas vêm sem pedir licença. Pode ser um momento, uma ação, um fato, um sorriso, uma pessoa. Ou apenas algo abstrato, que ainda não se concretizou.

Se Ele [chamado assim pois é considerado superior a todos nós, pobres mortais] trabalha diariamente pelos bilhões de habitantes deste planeta, que horas ele descansa? Será possível? Duvido cada vez mais...

sábado, 20 de setembro de 2008

A desordem

Disse que estava ali, que veio apenas para designificar, dessintetizar, desintegrar, desordenar. Não havia sentido em nada, porque esta era a ordem da vida: a busca ininterrupta por ordenamento daquilo que nunca poderá ser arquivado em prateleiras empoeiradas e esquecidas para sempre.

No chão molhado pela chuva fina que caía naquela noite estrelada, o cheiro era agradável e tudo era convidativo para um novo reabrir de sonhos e desejos. Transportava-se de cabeça, corpo e alma para refúgios distantes do normal e corriqueiro, pressionava sua nuca contra a palma da mão esquerda e, dessa forma, sentia ela flutuar por lugares fulgurantes e de chamativos desígnios.

Você gosta disto porque é seu, é intrínseco. Está impregnado nos fios de cabelo rebelde e reabilitado com forças sobrenaturais e definitivas. O som não satisfazia, não soava bem aos ouvidos, mas ele tentava manter a tranqüilidade típica de um monge ensimesmado em seus hábitos levianos e levados pelos ardis do pecado inconfesso.

A princesinha entreabriu a janela e viu um resplandecente nascer do sol.

A primareva pedia passagem e explodia em cada poro das existências excêntricas e mal compreendidas.

Não será entendida nem decupada, muito menos filtrada em idéias retocadas e apresentadas como novidades nas vitrines de ambições deturpadas.

sexta-feira, 19 de setembro de 2008

A morte da doença

Incessante. Cansável. Velocidade da luz. Pressa, muita pressa. Veloz!

Está tudo tão alucinante, que eu já nem percebo se estou no meu corpo ou quando já fui passear nos lados onde não se encontram mais matéria nem espaços, apenas vazios.

Mas eles serão preenchidos cada vez mais pela esperança ininterrupta que insiste em se manter sempre por perto, à espreita, vigiando e atacando preferencialmente nossas vontades mais medrosas e subnutridas.

Não há tempo. Só há coisas e mais coisas a fazer, mas o tempo não existe, não pode ser multiplicado. É isto e pronto.

O tempo. "Poderia não existir doenças, apenas a morte. Chegou e acabou. Sem preocupações insuportáveis com idas e vindas ao médico".

Entre aspas porque não é minha, é de uma das minhas inspirações. Ela já estava quase lá no 'chegou e acabou'. Amanhã é só o amanhã.

quinta-feira, 18 de setembro de 2008

Um objeto-coisa

Hoje tenho apenas uma coisa para dizer:

Fui transformado num objeto e o objeto se revirou aqui dentro de mim. Pude ver e sentir na pele o discurso que ouvi durante quatro anos. Me senti usado, apenas uma máquina facilmente controlável e manipulável.

Ah, outra coisa:

A viagem ao outro lado da ponte só me fez entender cada vez menos o que acontece por ali.

Momentos esperançosos.

Outros de desânimo. Outros ainda de certezas. Porém, elas se desintegram tão rápido quanto os grãos de areia do mar.

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Movendo os horizontes

A espera é por algo que ainda não se concretizou. É algo subjetivo ainda, que habita apenas a mente de um ser insano e à beira de um ataque de euforia em qualquer hora do dia e em todo lugar destinado à vida que pulsa dentro de músculos fortes, potentes, avantajados ou não. A demora tem que ser trazida para perto, acarinhada, embelezada, pois ela fará parte de cada murmuro que involuntariamente escapar de sua boca.

Os ouvidos estavam atentos, mas só ouviu o extremamente necessário ao mundano concerto dos causos da civilização desordenada. A civilização está empesteada de doenças sádicas e temporárias, mas que continuarão a atormentar o estabelecimento de novas leis e regras cruciais para a permanência de tudo quanto é hierarquia.

Ela foi mantida por séculos e séculos e ainda continua a distorcer os horizontes por onde passa e, sem pestanejar, agride até mesmo quem mal sabe expressar seu sentimento de culpa e desejo reprimido nas intenções implantadas criminosamente nas mudas de plantas que insistem em respirar o ar contaminado pela poluição das chaminés assassinas de humanos sanguinários e sem nobreza nenhuma.

O caso foi parar na cozinha da velha senhora idosa e gasta pelos anos que levaram todos os seus amados filhos. Mas ela, sem duvidar do além, mandou ele de volta para os quintos de onde tinha vindo. E ficou nesse vai e vém de viagens descontroladas pelo relógio impulsionado pela pressa das realizações incompletas e mal planejadas, mal aproveitadas. Cansado de tanto esperar, chutou para longe a bola que havia parado perto de seu pé e previu que aquele momento poderia transformar o andar da carruagem do mundão a que pertencia e desapercebidamente confiou cegamente no tesouro que encontrou ao abrir a janela naquela manhã: a brisa disse que era preciso se mover.

E foi o que fez.

terça-feira, 16 de setembro de 2008

Constantes Contrastes

Dia chuvoso. Nublado. Frio. Mesmo com o vento escancarando a minha pele eu permaneço desbravando tudo e todos, pois não há limites, não há portas nem muros, muito menos transposições de postos almejados. O curioso é como a alegria impera hoje. Surgiu não se sabe do quê, nem de qual paladar aguçado do gosto de terra molhada pela fina garoa. Calor humano, eu o provoco.

Sou tão provocante. Pergunto a todos que passam pelo caminho, indago e inquieto com um olhar penetrante e irregular, que surpreende e incomoda, aflige, mas também acarinha os mais solitários, os tão necessitados de apenas um olhar. Presto este pequeno serviço à humanidade, claro que é apenas um pedacinho bem pequenininho, mas eu estou aqui é para tirar as coisas do lugar, para bagunçar a ordem e estabelecer os ditames de um novo mundo, de um mundo novo.

Não, não estou me candidatando a nenhum cargo público. Só, e tão somente, tenho certeza inenarrável da vitória na eleição da vida, quando os corpos passearão entre si e farão sentir uns nos outros o doce sabor da quentura e da perdição humanas. Use o polegar para registrar a sua existência, mas acima de tudo, use a iluminação daquele poste ali, com seus raios de luz incessante, use-a! Para dar vazão às permanências mais injustas e desencontradas que, por ventura, achar pelos tubos gigantes ao longo do trajeto lúdico do fim do mundo.

O caminho estava equilibrado, porém ele não se contentou em seguir a linha reta, queria turbulências e tribulações, queria e conseguiu movimentar sua vidinha tão tediosa e sem grandes realizações. É simples: ele foi seguindo pela guia da sarjeta e lá na frente do templo das vaidades distraiu-se e tropeçou. Pronto, estava livre, já não era mais certinho, era ele mesmo quem ditaria dali para diante o que é acertado e o quanto é belo o erro redimido de palavras e gestos mudos.

O silêncio é duro, palpável, sólido. Você que nunca parou para prestar atenção. E não coloque a culpa nos outros Senhores Humanos, você é aquilo que você acredita. Se você acredita em Deus, você é seu próprio Deus... olha que maravilha! A humanidade está salva e viva, mais viva do que nunca. Encontrastes a cura, o segredo de todo o mistério que o perseguiu por toda a sua trilha errante. Contrastes.

Eu quero é o contraste, o desapego ao fútil, à diferença entornada num copo de cerveja na roda composta de humanos-homens e humanos-mulheres, além dos humanos-criancinhas, humanos-adolescentes e humanos-velhinhos.

Contra-o-traste! Ha-ha...

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

Um zero esdrúxulo ou bruxo?

Um bruxo.

Tudo parece nada, ao mesmo tempo em que nada parece tudo, e tudo se transforma no infinito do nada, e o nada se incorpora de tudo. Contudo, eis-me aqui divagando com a mente para caminhos nunca antes xeretados, uma mente novinha, porém um tanto assim... cansada no momento. É preciso dar asas a ela, pois o corpo está definhando e se assemelhando ao passarinho que acabou de nascer e implora por uma comida da boca da mãe. Que lindo.

No meio do mexerico, ateve-se apenas ao essencial da lúgubre caminhada que se apresentava à frente de todos os estilhaços da bomba de gás lacrimogêneo, vinda não se sabe de onde. Dos céus, quem sabe! Talvez chegou o tempo em que elas vão chover nas cabeças dos desavisados e no corpanzil de mulheres desapegadas do materialismo e das ambições luxuriantes. Catástrofe. Estado de espírito. Espírito de Estado, acabado, maquiado, titubeado, fraquejado e gigante pela própria natureza.

Mas tudo se fez presente no sonho delineado por duros cortes perigosos à ordem estabelecida. A paz era inventada, um produto da imaginação daqueles que ansiavam por um mundo justo, sincero, digno, quem sabe! A calmaria dos tempos passados não foi copiada, apenas esquecida depois que o sempre foi estabelecido e firmado como um ideal de vivência, de aquiescência, de condescendência. Mas como pode! É a intolerância dos pés à cabeça, com sua roupagem real e falsa.

Do chão surgiu um monte de impurezas. Do monte surgiu o barro. Do barro construiu-se uma casa de taipa. Da casa de taipa fez-se uma família feliz por anos a fio. Da família feliz criou-se a distância. Da distância surgiram os boatos e as intrigas. E destes, o mundo surgiu e desapareceu, num piscar de olhos e abrir de cabeças, dependuradas diante de indistintas frases que mal significavam a si próprias.

Em busca de um sentido que parece cada vez mais morar depois de onde se hospeda o nunca! Soltou um rugido, comparando-se ao rei da selva, e foi procurar o horizonte atrás do morro revestido de relógios que o alucinava e, mesmo continuando a trabalhar, faziam-no parar e estacionar no ponto de partida. Estava zerado.

domingo, 14 de setembro de 2008

Assim, um tanto sorrateiro

O insustentável ainda assim, meio capenga, conseguiu se sustentar ainda durante muitas décadas. Até que chegou a tempestade de areia e ilusões e levou para o fim do mundo [ou para o começo] tudo quanto é contradição e melancolia. Desfez-se o misticismo incrustado na pupila do olho marejado de cataratas e riachos esplêndidos. No outro lugar, onde tudo parecia acordar para o canto dos pequenos pássaros, uma voz foi calada brutalmente.

Foi reduzindo, reduzindo. Seu tamanho já não era mais o mesmo de antes. Sua boca já não se abria como antigamente. Seus dentes e mandíbulas pareciam grudados em um rosto que não era seu. Nada denotava tristeza, muito menos indiferença. Não havia expressões, antes tão intensas e estampadas para quem quisesse descobri-las. O cosmo parecia conspirar para o desabrochar dos terrores mais planejados e necessários. Não era tudo verdade, apenas a diferença tornou-se tão latente que dúvida nenhuma pairou sobre a arquitetura da indefinição.

Um espirro. Atchim! Desengonçado, atravessou a rua olhando o infinito e a bela lua cheia que se estendia pelos céus embriagados pelo frescor de sua insaciável luz. A impressão não se confirmou, assim como a profecia não revelada aos que se diziam mais instruídos e superiores. Mas no íntimo sabiam que a superioridade não ultrapassava sequer o ossinho do calcanhar esquerdo. A fraqueza também estava altamente inflamável e ele já não podia se esquivar dela.

Um cigarro ao chão, jogado como se fosse uma minhoca em fase de crescimento acelerado, ulcerando aquilo que um dia se chamou de pulmão saudável. Ainda esbanjava vida, porém a escuridão foi tomando conta de forma avassaladora. Mas não se importou, ainda podia respirar, com dificuldades, é verdade, mas ainda podia. Sua potência ainda não havia zerado e era tudo o que importava naqueles instantes efêmeros de sossego e reflexão. Serenidade às vezes faz bem para centralizar o eixo e desmembrar as energias infamantes de olhares apagados pelo seu próprio ego exacerbado e imundo.

Do véu de noiva, só restou um farrapo para ser colocado na entrada da casa abandonada. Há mais de dez anos, mas ainda continuava lá, com suas paredes intactas e marcas de convivências para sempre registradas em cada cantinho daquelas estruturas guerreadas.

Tudo isso foi a representação daquilo que não pensei, não sei, não fui, não falei, não calei, não dei, não demonstrei, não desliguei, não iluminei, não reparei, não estive, não neguei.

sábado, 13 de setembro de 2008

Nação-essência

Flu. Flu. Flu. Nota musical enervada e em carne viva, mas tão iluminada quanto o prédio velho e cheio de estamiras ensaboadas de calmaria. O mar.

Indícios foram revelados no tatame onde caem os corpos e se levantam as inquietações veladas e cremadas no íntimo da profundeza dos oceanos. Nem todos sabem que estão lá, mas os que tomaram consciência sente doer tudo por dentro.

Pensar dói como uma chaga impiedosa. Viver provoca reações contidas na trajetória veloz da cadência estelar.

A destrambelhada da vida flui como o sangue nas veias recheadas de monumentais desconcertos. A posterioridade reprimida e cansada dos pesares fundiu-se ao ematoma produzido pelos escorregões inevitáveis.

A polícia não entrou, mas roubou o pão dormido jogado ao chão de espectros famintos e chamuscados pela beleza da vida.

Salve as mais incompreendidas vontades, pois são por elas que essa montanha-russa escamoteada de vida se apega e não desprende [já]mais.

O que os olhos não vêem, os ouvidos não ouvem.

sexta-feira, 12 de setembro de 2008

A EXPULSÃO!

Clima nervoso. Um pregador de espesso bigode negro, terno azul marinho e duas gravatas sobrepostas, e também sua característica pasta preta, passou a proclamar seus impropérios naquele trem improvisado de púlpito de sua igreja. Ele falou mal de atrizes, atores e prostitutas, dando a entender que todos que seguissem esse caminho estavam condenados ao fogo do inferno.

Disse também que a salvação só existia na pequena igreja [e grande negócio] de onde tinha vindo especialmente para converter os corações perdidos e contaminados pelas ruindades do mundo.

Na estação seguinte o trem estacionou na plataforma, e ele foi convidado a se retirar por dois passageiros, indignados com sua ação descabida de incomodar as pessoas dentro de um local de onde não dá para fugir. Foi dessa forma que ele parou de incomodar os passageiros com suas ladainhas infames e imbecis. Mesmo assim continuou a esbravejar a sua doutrina de botequim, enquanto saía e se afastava.

Dessa vez, fez-se justiça. Toda a cena tinha um quê de comicidade. Sua liberdade foi podada, e daí? A minha também foi, quando achou que eu estava disponível a ouvir suas falácias.

Bendito seja, estou salvo e para sempre liberto de todo o mal! Cada vez mais acredito que eu sou a minha religião e a religião sou eu apenas e a natureza também, na sua plenitude esplendorosa. Ela também me pertence, faz parte de mim, sou eu indiscutivelmente. Seu furor é meu e a minha força vem dela.

Experiências revoltantes fazem com que se busque com mais freqüência os direitos de cada um. O dele era de permanecer calado e não incomodar. O meu era de continuar lendo o meu livro em paz. Na próxima oportunidade, eu mesmo vou esbravejar: "Vá para o inferno com toda a sua imundície disfarçada de bondade e boas intenções!"

Ponto final para este arroubo de racionalidade embutida no ego despojado de quietudes.

quinta-feira, 11 de setembro de 2008

Enlatando

Espremido. Resmungado. Estourado. Lamentado. Fugido. Entalado. Enlatado. Desrespeitado. Julgado. Condenado. Piorado. Esquematizado. Fungado. Folgado. Apagado.

Sisudo.

Pesado. Desumano. Incompreensível. Subjugado. Desorientado. Quase irrespirável. Apertado. Sonhado. Fechado. Perdido. Triste. Cantoria. Alegria. Impaciência. Empurrado. Gritado. Não ouvido. Segregado. Gado. Boi. Sardinhas. Descontente. Acomodadas. Velocidade.

Desregulado. Encurvado. Malemolência. Dolorido. Chorado. Buscado. Imóvel. Pescoço. Coluna. Ventilador. Ar. Portas. Preso. Solto. Apoiado. Levantado. Caído. Chão. Teto. Janela. Lá fora. Trilho. Odores. Cachaça. Cebola. Virado. Desvirado.

Retomado. Subida. Descida. Caminhada. Insensatez.

Espera. Deboche.

Estresse.

Calamidade. Pública. Privada. Suja. Amanhã. Tudo de novo. Sorte. É preciso.

quarta-feira, 10 de setembro de 2008

A cigarra cantou

Ao esgoelar todo o seu canto harmonioso, a cigarra mostrava que vivia em um ralo arvoredo, dos poucos que ainda restam por aquela cidade gradeada por muros e murada por grades. Anunciava dessa forma seu protesto e sua ambição de conseguir ser ouvida, percebida, para não permanecer sempre relegada a segundo plano.

Mas parou, perscrutou os mais íntimos detalhes dos andantes que por ali passavam e se surpreendeu: era uma tropa de formigas gigantes, que tinham tomado as feições dos bichos humanos. Por demais espantada, escondeu seus olhinhos em flores desabrochadas e murchas pelo frio terrível que fazia por aquelas bandas.

Viu um pequeno menino-formiga e teve ainda mais medo, pois ele a olhava com um ar de interrogação e dúvida, não sabendo se aquilo tudo era somente produto de sua imaginação. Mesmo que tenha continuado a andar e percorrer as duras pedrinhas que lhe machucavam os pés, tinha o nariz escorrendo, pois estava sozinho e não sabia para onde tinha ido seus pais. Estava perdido, desregulado, destronado.

Em seguida, retomou o canto eufórico e sem fastio. Aquilo tudo realmente não tinha passado de um pesadelo e um sonho maravilhoso de uma pequena cigarrinha que não gostava de cigarros, mas adorava charuto. Eu hein, que coisa mais esdrúxula. Imagine só, a Dona Cigarra sem Cigarro e com um Charutão Cubano na boca! Este mundo só deve estar de pernas para o ar mesmo.

O que tinha sido posto naquele móvel já não está mais, a cigarrinha se enfurnou na madeira, no caule, e ninguém nunca mais soube do seu paradeiro. Coitadinha. Mas a pena havia sumido e ela provavelmente a tinha levado para continuar os seus escritos em algum outro patamar da calamidade que assola os brejos mais imundos de todos os tempos. Atolou no lamaçal e não tinha filho da Terra que o tirasse dali. Ficou. Olhou. Esmoreceu. Cansou. Distraiu. Pereceu.

terça-feira, 9 de setembro de 2008

Universo perdido no anel

De repente achei tudo muito hilário e meu corpo estremeceu de êxtase com aquela mão e um de seus dedos preenchido com aquela aliança que simboliza tanto. Até pra mim representa muito, ou quase nada, como queira. Sempre observei com muita curiosidade a necessidade das pessoas usarem um aro prateado ou dourado no dedo pra representar todo um ideal mal refletido nas hipocrisias do dia-a-dia.

Um direito reservado apenas aos tolos. E não peço desculpas, não preciso, mesmo àqueles amados por mim. Não, não estou amargo hoje. Só queria desabar [na minha cama] um pouco. Mas não quero encher vossos ouvidos [sim, porque minhas palavras gritam escandalosamente] de mais e mais blá-blá-blás. Seu anel vai continuar aí mesmo. Mas ninguém vai impedir que eu continue achando toda a situação muito engraçada e patética.

Mas o corvo sobrevoou o abrigo lotado de ratos de todos os tamanhos imagináveis. Num vôo rasante descobriu que podia ficar por ali sem ser incomodado por ninguém. Era por demais solitário e anti-social, mas no fundo no fundo desejava de forma doentia travar relações com os bichos de outras espécies, mas que podiam ter as mesmas idéias que ele, ou não. Mas não revelava seu segredo nem pra si mesmo.

O corredor escuro se apresentou e foi crescendo a cada passo dado. Não havia portas ao longo dele, não viu, mas sentiu, tateou, caiu. Janelas muito menos. Escapatória nenhuma. Estava cercado e cuspiu no chão maldizendo a sua sorte, de estar num lugar com ar tão irrespirável.

Num piscar de pálpebras, percebeu que a vida já não o habitava e sua nova casa não tinha móveis nem emoções, era só ele e nada mais. Na verdade, agora não tinha mais casa. Era um andarilho no pó das estrelas no universo perdido de alguma galáxia.

segunda-feira, 8 de setembro de 2008

Transe-e-unte

A gargalhada estrondou lindamente e todos tiveram vontade de rir igualzinho, com o mesmo poder e força de um inocente anjo do sexo feminino. Ou masculino? Ou travesti? O curioso é que ela se desencadeou de tal forma que foi impossível conter a alegria geral que se espalhou pela cidade iluminada pelo céu nublado e faiscante de chuviscos.

Espreguiçou e soltou um grunido parecido com o de um urso que hibernou durante dias a fio sem notar que o mundo corria e a neve ainda caía lá fora. O espectro se aproximou e sentou-se ao seu lado sussurrando-lhe ao ouvido: ‘vá e não volte, volte sem ir, o direito de vir e ir já não lhe pertence’. Seu cachorro latiu e o despertou de vez para o sonho daquela manhã florida e primaveril.

Vilões estavam espalhados por todos os muquifos por onde passava. Os botecos dos arredores estavam apinhados de gente, mas as cervejas esquentavam em todas as mesas, pois todos pareciam adormecidos, e esqueciam de que estavam num espaço onde nada pára e tudo é alucinadamente proporcional à ambição ambulante que esmaga qualquer possibilidade de redenção.

Os urubus sobrevoavam o alto dos prédios enfaixados e doentes. Eles queriam comê-los, dilacerá-los, mas sua carne não foi muito apreciada e fugiram a toda velocidade para outro matadouro de sonhos. Quem sabe em algum beco do lugar perdido na estrada íngreme e cheia de pedregulhos que quase impediam a passagem dos transeuntes? Transe e unte bem. E depois não diga que eu não avisei, pois quem avisa não tem o que fazer. Ha-ha.

Ao toque do sino, o menino pequenino correu para debaixo da saia de sua mãe e se esquivou do vento gelado que afligia os mais sedentos corações cheios de dúvidas e fraquezas. A poesia não foi suficiente para aplacar a fome de parar e ficar a observar as palmeiras avistadas ao fundo do poço onde iam buscar água todo dia. Os excrementos não tinham destino, eram levados ao bel-prazer do destino inibidor de meias-palavras, meios-tons, meias-conversas. Era tudo por inteiro e havia muitos absurdos mutilados.

domingo, 7 de setembro de 2008

O delírio do cansaço

O cansaço toma conta e oprime cada vez mais aquele corpinho raquítico e frágil na existência avassaladora do dia-a-dia impiedoso. Não perdoa, não releva, o tempo passa cada vez mais veloz. E eu fico aqui sem saber como administrá-lo, como multiplicá-lo, desprezá-lo. Salvando um resto de sabor e aroma de melancia adocicado e cheio de permissividade. Eu quero.

Cartões foram jogados ao alto e as pulseiras de metal foram presas aos pulsos daqueles que se submetiam ao grotesco e grosseiro. Agora já não faz mais sentido nem vale a pena, terminou e não disse para onde ia, não houve rastros em seu caminho, não houve pistas que indicassem o seu paradeiro. Sempre foi confuso e perdido, mas não contava com aquela descoberta da trilha para o fim do mundo. Não. Era depois ainda do fim do mundo. Mas conseguimos chegar lá. É como se os tivessem jogado naquele mundaréu de descaso e fossem esquecidos à própria sorte, que pouquíssimas vezes bateu em sua porta.

Encancarou-a e meteu-se a besta. Não foi necessário nenhuma cerimônia. Foi entrando, se apresentando, se mostrando, se fazendo. Mas com uma humildade controversa ficou feliz de sentir um clima simpático e fresco. Era bem-vindo. Era querido e bem-vindo naquele lugar. Não se cansou de exclamar que gostaria de pertencer para todo o sempre a si mesmo e a todos. A todos os lugares onde pudesse encontrar o delírio das paixões que transcendem a compreensão desumana.

E por lá não ficou e foi descobrir o mundo. Tentar mudá-lo, talvez. Estava cansado naquela noite, mas jurou a si mesmo que não abandonaria a convicção de que aprenderia cada vez mais com os regalos da vida e as promessas soltas pelos corações desabrigados e maltratados. Havia sido encontrado, o que contribuiu para diminuir um pouco o desespero. Amanhã ele estará cada vez mais distante. Ele mesmo me segredou. Confie em mim.

sábado, 6 de setembro de 2008

Amontoado de diferenças

Parecia não pertencer ao lugar que tinha leis, mas não eram declaradas. O furacão passou e quis saber o que ocorria por aquelas bandas dali, não compreendia por que todos ainda insistiam em permanecer ali, mesmo correndo todos os perigos, as criminosas atitudes de seres rastejantes pela madrugada adentro que não sossegam de gemer fortemente, como se se apegassem ao mais alto tom da indiscreta falibilidade.

Os objetos pareciam estar fora do espaço a que pertenciam anteriormente. A intolerância animalesca, mas somente humana, fez de seus vis corações sementes impregnadas de branquitude exalada na fumaça do cigarro que incomoda inflexivelmente. O fuminho não se conteve e se espalhou.

Já ia pegar a caneta, sua arma, mas não teve tempo de rabiscar nada. Não era o momento... a viagem estava próxima, já estavam apertando os cintos. A velocidade ia a tal extremo que a força do vento fazia a expressão do seu rosto parecer um amontoado de olhos, bocas, narizes, espinhas, manchas e rugas. Na testa tinha um indescritível sinal de tédio. Estava estampado como uma placa, mas não conseguia enxergar no reflexo do espelho.

A porta do boteco está aberta, não se fecha quase nunca. É para lá que vão as almas da esquina da rua sem saída do outro lado da cidade. Reza a lenda que ficam por ali a inalar o sabor da displicência e falta de regras, de pré-condições. Se revezam para não ter medo de se ocupar do mesmo itinerário na busca pela perfeição de seus defeitos. Os passos já não condizem com o modo de se mostrar, uma perna parece maior que a outra, o caminhar desajeita a maneira de se portar, de seguir mirando a estrada à frente, símbolo da reflexão e das diferenças.

Não chega, está longe. Lá na linha horizontal que persegue e afugenta os mais ínfimos detalhes incrustados na mais tenra alegria que não se cansa de reviver em momentos de apogeu, alento, loucura. É o início. E talvez o fim.

sexta-feira, 5 de setembro de 2008

Roçando três mudas de vento

Roçar e deslizar sua perna no desconhecido faz parte de um momento mágico e contraditório. Você não conhece, mas está ali. Aparentemente não difere em muita coisa de sua estatura baixa e morosa, mas sem indagações e interceptações percebe que é igual, que é você travestido de outra roupagem, inovadora e deslocada de sua couraça original.

Tentam balançar de um lado e de outro, mas me mantenho teso e resoluto diante das peripécias [sempre gostei desta palavra] que me apresentam e se transformam quando chegam a mim. Tomo posse, são minhas e de mais ninguém. É o meu livro de histórias mal contadas, mal iniciadas, mal rabiscadas, mas contundentes naquilo que fortalece cada vez mais a abdicação de velhos valores e novas morais. E a vergonha acabou-se por completo, para todo o sempre até que alguém a mude de lugar e a transforme no estandarte dos bons costumes que oprimem e regulamentam um espaço reservado ao caos e à anarquia.

Um sinal obsceno de uma revigorante e desmiolada senhorinha que perambula pelas esquinas de tráfego misturado com tráfico, que reverbera nos ossos daqueles que foram enterrados e se contorcem para voltar à tona, poder respirar e gritar impropérios inimagináveis diante da vossa excelência sagrada e pura. Pureza entremeada de guerras infames e extrovertidas, que gargalham na cara do perigo de se perder e perder o medo do inigualável teorema formulado por malucos de todo o mundo, de todas as eras.

Um vestido balança no varal ao sabor da ventania que ofusca com suas pedrinhas e pequenos ciscos imperceptíveis no ar impuro e levemente morno. O crepúsculo toma a varandinha da pequena moradia construída com palhas, madeiras, pregos, rumores, ganas, avarezas, solidariedade, samba do crioulo doido, mutirão. O doido corre segurando suas calças, e naquela cena engraçada não se inibe de continuar a correr desenfreadamente. De repente, rouba o vestido florido que estava no varal e o veste todo desajeitado. Que doido!

Mas não parou de pensar que se deseja o que quer já não se permite mais querer, e se não quer o que lhe é sugerido, estupora-se e se debate como um epilético, sem nem imaginar que os tremeliques do seu corpo representam apenas a falta de sensação obstinada que o aflige repentinamente sempre pela manhã dos dias, que sempre parecem enevoados e nublados, aquele tempo que o faz ficar ‘down’. Que down o quê ô! Down é o critério com o qual analisa a si mesmo. Fechou o vidro da janela e saiu para curtir a vida que se contorcia lá fora.

quinta-feira, 4 de setembro de 2008

Memórias de uma bicicleta

Fui tomado de um acesso de bom humor tremendo, que desconfio tenha surgido de algum lugar aqui na consciência do garotinho que ainda habita esse corpo que insiste em envelhecer a cada dia, questionando os rumos dos tempos e das horas. Quem os criou? Eu próprio, junto com todos os outros. Mas para onde levá-lo não sei. Só sei que o levo sem pensar, sem notar que ele está ali. Uma vez li em algum livro do Érico Veríssimo que o tempo só existe se dermos atenção para ele. Caso contrário, ele ficará ali apenas para mexer os ponteirinhos do relógio, tiquetaqueando ensurdecedoramente.

Ela era uma criancinha linda, parecia uma boneca de porcelana com seus cabelos cacheados e sua tez branquinha branquinha, bochechas [e que bochechas!] rosadas como as de uma pequena alemã, ou como aquelas mulheres que passam um tal pozinho para denotar saúde. O que importa é que ela ganhou uma bicicleta de presente e ainda não sabia andar. No começo passeava pelas ruas ao redor de sua simples casinha [bem parecida com aquelas que desenhamos na escola]. Empurrava seu tesouro como se aquilo fizesse ela pertencer a este mundo. Como num estalo, teve certeza. Era possuída por este universo assim como o possuía com toda a sua força de criança inocente.

Mas não se arriscava a montar na bicicleta e tomar o primeiro tombo, necessário e inevitável. Ela sabia disso, mas ainda assim se negava a ralar seus lindos joelhinhos. Sempre pela manhã todos que passavam, observavam aquela cena e pensavam, às vezes, que tivesse saído de um conto de fadas. Seus cachos castanhos pareciam refletir toda a bondade e impetuosidade existente naquele pequeno ser, cheio de vida e desengonçado de meiguices. Era até motivo de riso de outras crianças maldosas que passavam a toda velocidade com suas bicicletas reluzentes. Mas nem ligava; para ela tudo era um processo em sua vida e deveria passar por ele com toda a dignidade possível. Mas não me pergunte como ela sabia de tudo isso não tendo completado nem os cinco anos de idade.

E seguia a empurrar, como empurramos o carrinho de compras no supermercado ou o de bebê num passeio pelo bosque. Empurrava com afinco e tinha certeza que não poderia passar a vida inteira a empurrar, que decisões seriam cobradas dela a cada instante, à medida que o tempo [olha ele de novo!] passasse. E sua resolução não poderia ter sido outra: encostou a bicicleta na parede frontal de sua casa e subiu no banco. Mesmo com as pernas trêmulas e temendo se machucar muito, deu um impulso e conseguiu percorrer alguns poucos metros, o que para ela pareceu um grande trajeto. Naquele momento era a personificação da confiança, mas em seguida caiu em meio ao cascalho que havia na frente de sua casa.

O inevitável ocorreu: ralou um pouco os joelhos e as mãos. Porém, teve certeza de que deu um passo gigante em sua vida. O primeiro teste de muitos que viriam pela frente. E até hoje se pergunta por que não aprendeu a andar de bicicleta antes. Seu sábio pai esboça uma resposta: "tudo ao seu tempo, minha filha", diz com um olhar peralta, que a fez lembrar a infância ainda presente dentro dela.

quarta-feira, 3 de setembro de 2008

Surpreendido pelo mendigo

Descendo uma rua vejo um mendigo agachado encostado num poste. Me aproximo e fixo seus olhos lacrimosos onde o sol batia fortemente, apesar de não ser o sol do meio dia e estar se preparando já para se pôr. Eis que manda um beijo, sincero e humilde, e diz: "Vai com Deus". De tão inesperado não tenho tempo de esboçar uma reação à altura, apenas um leve sorriso não tão natural como foi o dele.

Fico espantado como muitas vezes a beleza pode ser encontrada nos recantos mais esquecidos e reservados aos olhares apressados e tornados cegos por isso mesmo. Mas é preciso abrir as sensibilidades aos acasos que nos esperam abobalhados e cheios de sede de notabilidade. Ele ficou lá. Eu fiquei aqui. Mas levei um pedacinho da cena e deixei um meio-sorriso de presente, ou alguma outra impressão que tenha ficado por ali, naquele poste, calçada, tropeços.

Meus dedos não titubearam em tamborilar algumas notas desconexas e cheias de poesia enaltecida dentro de mim por ações que não puderam mais se conter e ser contidas atrás da jaula da insensatez. Sigo no sentido horizontal, mas o vertical se apresenta constantemente em meus pesadelos dissimuladamente benéficos à minha expressão desavergonhada de sardas embutidas em outros tempos, em outras vidas.

Histórias, há muitas. Saídas, igualmente. Prisões, também. Está bem, a fuga do corriqueiro é o andarilho que sobe no pau-de-sebo e não se cansa de almejar seu prêmio que só conseguirá se chegar até o mais alto, onde o céu, o vento e a lua se aproximam e o revigora de forças para que prossiga derrapando e persistindo no objetivo de subir, subir e não ter medo de descer. A altura é gigante. Mais gigante ainda é a certeza de que não há certeza de nada, e nada sempre existe para ser preenchida de tudo quanto se pode achar que estava perdido.

No surpreendente caminho, parou, sentou em uma pedra e refletiu. Poderia ser ele, naquela mesma posição, em igual estado, com o mesmo humor, coração, sagacidade, complacência. Mandaria ou não o beijo? Diria ou não palavras de amizade? A voz poderia sumir, mas também poderia explanar sobre assuntos incompreensíveis para almas que não se atrevem a voar...

terça-feira, 2 de setembro de 2008

Bolinhos de chuva do mar

Quero apenas dar um pontapé na brisa marítima que cobre de arrepios as nêsperas do deserto habitado por criaturas insalubres e descontentes ao sabor de seu azar. No dia de São Longuinho vão comemorar o achado daquela preciosidade embutida no pé de laranja-lima. Nunca tinha visto um ipê. Que amarelo impactante e delicado. Também não havia tucanos em sua terra, pensava que eles habitavam apenas o zoológico perto de sua casa. O tucano comeu comeu comeu e ainda assim não saciou sua sede de corpos navegantes pelos extremos da crosta terrestre. A Terra. Da janela vislumbro timidamente uma estátua com auréola de anjo [tem auréola de outra coisa?] e iluminada pelo sol refrescante daquela tarde de inverno. Torrando ali diariamente. Ela estava parada [sim, não se mexia de modo algum!] no alto de alguma igrejinha com paredes e ornamentos desbotados e tomados pela ação impiedosa e nada vulgar do tempo. Que não tinha cabimento nenhum, ela sabia, e tinha plena consciência disso, mas sua resolução não foi a esperada pelos demais simplórios que viviam em palacetes de hipocrisias e mentiras disfarçadas de luzes ofuscantes e cheias de beleza estonteante. Dizia que no seu entender o mundo não passa de uma pequena constelação de estrelas. Mas e essa imensidão de mares e terras? São menos do que o menor dos seres inanimadamente vivos que figuram no universo. Figuras montadas ao bel-prazer do criador de causos e crendices. Lembrei do fogão à lenha da minha avó, com suas labaredas que eram incitadas a cada instante para cozinhar o alimento do dia. Eu fui buscar a lenha e a plantei aos pés de Rosa Rosalina e ela abriu um sorriso de agradecimento. Seus netinhos não ficarão ao léu naquele fim de tarde. Irá preparar mais um saboroso arroz doce. Hummmm. Já sinto o aroma que minha memória não esquece nunca. 'Dindinha, faz bolinho de chuva também?'

segunda-feira, 1 de setembro de 2008

A coisa é agora!

Duas criancinhas brincando no escorregador do parquinho da pequena praça, pela manhã, quando o sol ainda nascia e espantava para longe o friozinho que gelava até os ossos. Malabarismos com pernas e pés e eis que a porta se abre, ninguém tropeça nem cai e todos seguem desabalando tudo ao redor.

Não quer permitir que o desespero e o labirinto com múltiplas saídas se apresentem como uma muralha a ser engolida. Não, ela será transposta e ainda há de rir na cara dela. É isso. Rir é preciso para não perder as estribeiras. Respire e siga.

Às vezes penso que gostaria de ser uma árvore onde o casal de apaixonados risca as iniciais do nome, dele e dela, dela e dela, dele e dele, deles e deles, delas e delas. Mas tudo é tão insanamente desavisado que me altera o estado natural de estar.

Um dia, as criancinhas fizeram a maior bagunça em casa porque foram deixadas sozinhas; peraltas e espertas como só elas sabem ser, pegaram garrafas de óleo de cozinha no armário e saíram espalhando seu líquido pelo chão, paredes, objetos, camas, travesseiros, tudo o que viam pela frente. Era uma espécie de brincadeira, não era maldade não; como se divertiram naquele dia. A mãe que não achou nada engraçado, mas é que os adultos desaprendem a rir rápido demais. Um escarcéu só.

Agora ela está mancando [não a mãe, nem as criancinhas, já falo de outro ser], porém espera e continua a caminhar acreditando que logo estará restabelecida e novinha em folha. Depois de amanhã, só. Mas o hoje é urgente e pra anteontem. Passado. Já foi o próximo... Salve a natureza, pois a coisa é agora!