quinta-feira, 4 de setembro de 2008

Memórias de uma bicicleta

Fui tomado de um acesso de bom humor tremendo, que desconfio tenha surgido de algum lugar aqui na consciência do garotinho que ainda habita esse corpo que insiste em envelhecer a cada dia, questionando os rumos dos tempos e das horas. Quem os criou? Eu próprio, junto com todos os outros. Mas para onde levá-lo não sei. Só sei que o levo sem pensar, sem notar que ele está ali. Uma vez li em algum livro do Érico Veríssimo que o tempo só existe se dermos atenção para ele. Caso contrário, ele ficará ali apenas para mexer os ponteirinhos do relógio, tiquetaqueando ensurdecedoramente.

Ela era uma criancinha linda, parecia uma boneca de porcelana com seus cabelos cacheados e sua tez branquinha branquinha, bochechas [e que bochechas!] rosadas como as de uma pequena alemã, ou como aquelas mulheres que passam um tal pozinho para denotar saúde. O que importa é que ela ganhou uma bicicleta de presente e ainda não sabia andar. No começo passeava pelas ruas ao redor de sua simples casinha [bem parecida com aquelas que desenhamos na escola]. Empurrava seu tesouro como se aquilo fizesse ela pertencer a este mundo. Como num estalo, teve certeza. Era possuída por este universo assim como o possuía com toda a sua força de criança inocente.

Mas não se arriscava a montar na bicicleta e tomar o primeiro tombo, necessário e inevitável. Ela sabia disso, mas ainda assim se negava a ralar seus lindos joelhinhos. Sempre pela manhã todos que passavam, observavam aquela cena e pensavam, às vezes, que tivesse saído de um conto de fadas. Seus cachos castanhos pareciam refletir toda a bondade e impetuosidade existente naquele pequeno ser, cheio de vida e desengonçado de meiguices. Era até motivo de riso de outras crianças maldosas que passavam a toda velocidade com suas bicicletas reluzentes. Mas nem ligava; para ela tudo era um processo em sua vida e deveria passar por ele com toda a dignidade possível. Mas não me pergunte como ela sabia de tudo isso não tendo completado nem os cinco anos de idade.

E seguia a empurrar, como empurramos o carrinho de compras no supermercado ou o de bebê num passeio pelo bosque. Empurrava com afinco e tinha certeza que não poderia passar a vida inteira a empurrar, que decisões seriam cobradas dela a cada instante, à medida que o tempo [olha ele de novo!] passasse. E sua resolução não poderia ter sido outra: encostou a bicicleta na parede frontal de sua casa e subiu no banco. Mesmo com as pernas trêmulas e temendo se machucar muito, deu um impulso e conseguiu percorrer alguns poucos metros, o que para ela pareceu um grande trajeto. Naquele momento era a personificação da confiança, mas em seguida caiu em meio ao cascalho que havia na frente de sua casa.

O inevitável ocorreu: ralou um pouco os joelhos e as mãos. Porém, teve certeza de que deu um passo gigante em sua vida. O primeiro teste de muitos que viriam pela frente. E até hoje se pergunta por que não aprendeu a andar de bicicleta antes. Seu sábio pai esboça uma resposta: "tudo ao seu tempo, minha filha", diz com um olhar peralta, que a fez lembrar a infância ainda presente dentro dela.

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