quarta-feira, 10 de setembro de 2008

A cigarra cantou

Ao esgoelar todo o seu canto harmonioso, a cigarra mostrava que vivia em um ralo arvoredo, dos poucos que ainda restam por aquela cidade gradeada por muros e murada por grades. Anunciava dessa forma seu protesto e sua ambição de conseguir ser ouvida, percebida, para não permanecer sempre relegada a segundo plano.

Mas parou, perscrutou os mais íntimos detalhes dos andantes que por ali passavam e se surpreendeu: era uma tropa de formigas gigantes, que tinham tomado as feições dos bichos humanos. Por demais espantada, escondeu seus olhinhos em flores desabrochadas e murchas pelo frio terrível que fazia por aquelas bandas.

Viu um pequeno menino-formiga e teve ainda mais medo, pois ele a olhava com um ar de interrogação e dúvida, não sabendo se aquilo tudo era somente produto de sua imaginação. Mesmo que tenha continuado a andar e percorrer as duras pedrinhas que lhe machucavam os pés, tinha o nariz escorrendo, pois estava sozinho e não sabia para onde tinha ido seus pais. Estava perdido, desregulado, destronado.

Em seguida, retomou o canto eufórico e sem fastio. Aquilo tudo realmente não tinha passado de um pesadelo e um sonho maravilhoso de uma pequena cigarrinha que não gostava de cigarros, mas adorava charuto. Eu hein, que coisa mais esdrúxula. Imagine só, a Dona Cigarra sem Cigarro e com um Charutão Cubano na boca! Este mundo só deve estar de pernas para o ar mesmo.

O que tinha sido posto naquele móvel já não está mais, a cigarrinha se enfurnou na madeira, no caule, e ninguém nunca mais soube do seu paradeiro. Coitadinha. Mas a pena havia sumido e ela provavelmente a tinha levado para continuar os seus escritos em algum outro patamar da calamidade que assola os brejos mais imundos de todos os tempos. Atolou no lamaçal e não tinha filho da Terra que o tirasse dali. Ficou. Olhou. Esmoreceu. Cansou. Distraiu. Pereceu.

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